terça-feira, fevereiro 20, 2007

Anti-Situacionistas





Bem-vindos das férias do Carnaval... embora as máscaras continuem à solta.
No século passado, bastava alguém dizer-se de Esquerda ou de Direita, progressista ou conservador, oposicionista ou situacionista, para se saber quais as suas opiniões sobre Religião, Estado, Educação, Guerra, Paz, e impostos.
A razão pela qual isso mudou tem vindo a ser indicada de muitas maneiras e há mais de vinte anos como sendo o fim da ideologia, o fim da história, e outros veredictos penúltimos.
Os veredictos intelectuais viraram clichés e foram repetidos por jornalistas radicais e copiados por políticos moderados. O fim da ideologia traria o termo de conflitos políticos graves nas sociedades pós-industriais; significaria a ausência de novos movimentos sociais, o aviso definitivo contra as perigosas utopias sobre as possibilidades humanas. Seria o triunfo da política de compromisso e diálogo e, no pior dos casos, traria reformas às pinguinhas, objectivos a curto prazo e manobras para as próximas eleições.
Assim foi o fim da história planeado como uma chumbada em todo o Ocidente pós-Guerra Fria. O resto do mundo, onde ainda há restos de história violenta, forneceria episódios excitantes para a televisão. O burguês empantufado e empanturrado ver-se-ia acometido pelo situacionismo da terceira via, a única ideologia política admitida.
A explicação mais rápida para o triunfo do situacionismo foi dada inevitavelmente por um professor, embora americano, ao afirmar que "a Direita ganhou a guerra económica, a Esquerda ganhou a guerra cultural e o Centro a guerra política." Impressiona, mas é uma meia- verdade. Parece verdade, mas é uma meia-mentira. As sociedade são construídas por pessoas e só depois por abstracções.
Basta olhar para quem pode ser anti-situacionista.
O primeiro anti-situacionista, chamemos-lhe Ricardo, teve todas as opiniões correctas de esquerda como adolescente dos anos 70. Foi a Vilar de Mouros, fumou erva, teve sexo livre, rock & pop, gostava de Che Guevara e do marxismo proletário. Em suma, estava mal informado. Ainda hoje desconfia absolutamente da autoridade, a Igreja, os ricos, a tradição, as grande empresas. Quando pronuncia "direita”, subentende “fascista”. É um delírio, mas defende o populismo, o “small is beutiful”, os toques identitários. A religião do Ricardo é uma combinação hiper-activa de ateísmo e misticismo ecológico. Defende uniões de facto e droga despenalizada por razões de coerência. Se aderisse a um grupo religioso chamar-lhe-ia “oportet haereses”. Alberto Caeiro é o único profeta que admite e Eduardo Prado Coelho o seu talmudista preferido: considera-o demasiado gordinho para rebelde, mas resume livros agnósticos semi-indispensáveis que ninguém mais teria paciência para ler.
O Henrique é um socialista muito moderado. Votou sempre PS - excepto para a Junta de Freguesia onde concorria “um tipo porreiro”. É dos que sabe que, em Portugal, é mais difícil ser senhor do que ser doutor. É útil, inteligente e sincero na sua devoção ao serviço público. Trabalhou no privado (com sucesso) e depois passou, por concurso, para a Administração Pública, conhecendo a pente fino as inconsistências entre políticas públicas e respectivos Livros Brancos. Detesta extremos de paixão pessoal ou ideologia. Quando muito, revolta-se contra o estilo filisteu de Alberto João e o estilo fariseu de Fernando Rosas: “agarrem-me senão rasgo as vestes”. Abstém-se nas novas questões sociais das uniões de facto e aborto; acha que são problemas a resolver em casa. O Henrique é um católico de trazer por casa, ou seja, acredita que Deus é um ser que deve ter algum sentido porque há pessoas estimáveis que acreditam.
A Paula gosta dos centros aritméticos. Talvez por causa do nome associam-na ao PP mas é mais nova e mais previsível; nunca deixa dúvidas a ninguém que é uma mulher e que vota no PSD. Toda a gente partilha as suas arremetidas e gracejos sobre socialistas. Já se deu bem em empresas de informática, onde parecia perpetuamente em estado de beatitude, mas agora passou para a Bolsa onde fará o negócio da sua vida. A magia dos números repercute-se no seu interesse pelas combinações eleitorais. Acha que encontrou o candidato certo para o lugar certo mas o interessado ainda não deu por isso, bloqueado como está por ambições na Europa. A Paula nunca falha uma missa de domingo mas jamais a apanhariam numa missa de semana. A religião deve ser como os números; conta, peso e medida.
O João, muito conservador, bombardeia as pessoas com estatísticas sobre crime violento, violação, pedofilia, drogas, e outras actividades similares das classes involuntariamente ociosas, como os aristocratas ingleses chamavam aos desempregados. Preocupa-se que a percentagem de casamentos que termina em suicídio conjugal se aproxime dos 40%. Sabe que estamos perante a primeira geração da história portuguesa em que a educação é para (quase) todos e o emprego certo para uma parcela. Desconfia muito do clero católico que considera infiltrado pela maçonaria e pela confusão do peixinho vermelho entre preocupações sociais e socialismo. O seu máximo de tolerância religiosa é ouvir o Rão Kyao. Mas apesar de considerar o mundo quase perdido, o João tem sentido de humor, compaixão genuína, e honestidade total em todas as nobres causas em que se empenha.
Aparentemente, a mão invisível que tutela a sociedade encarregou-se de repartir as virtudes políticas por todos estes anti-situacionistas. Não deu tudo a todos mas entregou-lhes uma dose suficiente de bom senso para que resistam às consignas da classe política que faz figura triste perante um eleitorado cada vez mais consciente dos benefícios...da abstenção.
Acorrentados, estes anti-situacionistas iriam cheirar-se como cães desconfiados e ladrar sinais de aviso. Mas conversados, começariam a ver que partilham opiniões que transcendem o “situacionismo: a cultura de massas, ao contrário da exploração económica ou do desrespeito pelos direitos, não é susceptível de correcção por meios políticos; a suspeita de que há Estado a mais e sociedade civil a menos tem de ser completada por uma paixão pelas causas cívicas; o interesse em preservar o ambiente, o património, o consumo, exige muitas espécies de comunitarismos; não vale a pena discriminar entre o Ocidente e o resto do mundo porque, como disse a Madre Teresa em Harvard, nunca se sabe bem quem são os pobres.
Acorrentados, os anti-situacionistas descobririam mais do que um jogo de preferências. Talvez encontrassem uma afinidade psicológica, e talvez mesmo espiritual, por debaixo das profundas diferenças políticas e filosóficas. Tornar-se-ia óbvio para os quatro a espécie de divisão espiritual entre “eles” e os situacionistas; a política começa pelas pessoas enfiadas na Centro, na Direita e na Esquerda, antes de continuar pelas respectivas abstracções.
Mendo Castro Henriques
EURONOTÍCIAS, 2 de Março de 2001

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